Ela... por Anderson Lucas

O sol nasceu pouco atrás das casinhas, mas muitos já estão acordados. Ela está na janela de casa acenando com suas mãozinhas, enquanto sua mãe desce beco abaixo. Ela fica a observar aquele nascer da manhã, vê passar os velozes a cruzarem os céus e pensa: “Estão indo trabalhar igual mamãe!”.  No morro ao lado da sua casa, árvores imitam uma dança e sopram em sua direção um ar agrádavel.

Ela vira-se para dentro de casa, vê sua bolsa em cima da cadeira e uma térmica. Sabe que deve tomar café e ir para casa da tia Julia. Sabe que não é sua tia, mas mamãe pediu para chamá-la assim.

Após tomar o café quentinho usando sua xicára preferida, que mamãe lhe deu de aniversário, a coloca na pia e observa os desenhos pintados na circunferência do amado objeto, são flores, pequenas árvores, um pequenino cachorro e uma casinha amarela. Questiona-se se mora alguém na pequena casinha e se seu teto também chora quando chove. De supresa descobre seu lápis perdido entre as louças lavadas. Não entendi como ele foi parar ali. “Deve ter se assustado com os barulhos das bombas da noite anterior”, pensa. Morde a boca de leve, sorri para ele e o recolhe.

Coloca a bolsa em suas costas e, na mão direita, seu fiel novo companheiro lápis. Hoje ela está feliz! Abre a porta, sai de casa. Quando passa pelo portão, pula por cima da água que escorre pela rua. Pequenos mosquitos parecem brincar naquela lama escura e com cheiro ruim. Com seu poderoso lápis pinta um rio no lugar daquela água “feia”. Os insetos voadores são transformados em lindos pássaros coloridos que não precisam trabalhar. Olha tudo o que fez. Gosta do resultado. Desce a estrada de terra andando, às vezes, correndo ou dando pulinhos.

Subindo em sua direção vem um carro com pequenas luzes vermelhas no teto. Dentro tem quatro moços. Três seguravam objetos com os quais fazem bombinhas à noite. Ela não gosta dos fazedores de bombas, pois assustaram seu lápis. Pega a borracha presente no outro extremo do lápis. Apaga as luzes vermelhas e os fazedores de bombas. Pinta anzóis nas mãos dos moços sérios para pescarem no rio que acabou de criar. Assim está melhor. Sorri e continua a descida.

Quando vira a primeira esquina, vê sua amiga Lúcia. Está sentada na escada da sua casa. Parece triste. Vai até ela. Descobre que hoje esta só, pois sua mãe e seu pai foram a algum lugar para o qual não podem levar criança. Seu irmão dormia de um jeito estranho no beco que fica a alguns metros dali, saía uma tinta vermelha do seu corpo. “Mãe chorava e seu pai estava muito sério”, relata Lúcia. Ela não sabia que podíamos produzir cores daquele jeito. Não pode ficar ali, mas não quer deixar a amiga tão só. Lembra que na sua bolsa tem um amiguinho que ganhou da professora, o retira e entrega a Lúcia. Em sua capa tem uma floresta e bichinhos, em suas páginas, linhas formam criaturas descoloridas. Com seu lápis encantado pinta em cada dedo de Lúcia uma cor diferente, pede a ela que decore as folhas com suas cores, com seu toque. Alegram-se com aquela nova possibilidade. Ela despede-se de Lúcia e continua a descida.

Chega à casa da tia, que a beija e lhe dá um forte abraço. Ela diz oi a Joãozinho, filho da tia, e o abraça. Percebe que estavam apenas esperando sua chegada. Segura a mão disponível, pois Joãozinho já está preso a outra. Vão os três a caminhar rumo à avenida preta com listras de zebras pintadas no chão. Ela vê as caixinhas com dois homenzinhos, um verde e um vermelho. Aprendeu com mamãe que só pode passar quando o homenzinho verde aparecer, pois o vermelho é bravo.

Os três atravessam. Do outro lado avistam meninos, alguns descalços com caixas de doces variados na mão. “O sol está quente, eles não deveriam esta ali”, pensa ela. Algumas pessoas dentro dos carros parecem irritadas com eles e fecham seus vidros.

A tia acelera o passo, pois precisam chegar a tempo na escolinha. Os três aceleram, mas ela fica olhando os garotos sumirem do seu raio de visão.

Chegam em frente a escola. Eles entram. A tia despede-se e vai embora. Eles chegam à porta da sala. Ela pensa que ontem aprendeu o que o lápis pode fazer e já usou o seu poder para colorir o mundo. Fica pensando o que vai aprender hoje para usar amanhã. Talvez algo que alegre os garotos dos doces. Ela deixa a bolsa sobre a carteira e junta-se aos amigos que estão sentados no chão em roda. Pensa “É isso! Talvez os garotos possam estar aqui, protegidos do sol quente! Amanhã falarei com eles!”. Sorri. A professora fecha a porta. Entrega uma folha com rabiscos. Ela pergunta o que são aquelas coisas no papel. A professora responde: “Letras! É o seu nome!”.

Começa a chamada. Ontem ela aprendeu que deveria falar uma palavrinha ao ouvir seu nome. Tenta recordar-se. A professora fala “Esperança!”. Ela se lembra e responde “Presente!”.