Convulsão - por Anderson Teixeira

Hoje acordei cedo, mas já estava atrasado. Tomei café rápido, sem tempo para sentir o cheirinho da fumaça exalando pela cozinha a correr pelas minhas narinas, aquele cheiro invasor, porém muito agradável. Escovei os dentes. Coloquei a bolsa nas costas. Abri o portão. Fechei o portão. Coloquei o pé para fora e lá no início da avenida o ônibus surgiu. Corri para o ponto. Dei sinal, a porta se abriu e entrei.

         Dentro do ônibus, duas pessoas falavam a respeito da filha da vizinha que só anda “pelada” e “está pedindo” ou “quando acontece essas coisas ainda reclama”. Sim, havia começado mais um dia. Não satisfeitos, esses mesmos cidadãos reclamaram de alguns ambulantes que vendiam bijuterias na calçada, disseram que eles deveriam “lavar o cabelo às vezes” ou “procurar alguma coisa para fazer da vida”. Depois de alguns minutos desci e embarquei no metrô.

         O transporte hoje, como ontem e todos os dias anteriores, estava super lotado. A alguns passos de onde eu estava, uma transexual ouvia música e fingia que não notava os mais variados olhares que lhes eram direcionados. Uma senhora teve a audácia de levantar-se da cadeira que estava e puxar seu filho, que aparentava ter no máximo sete anos, arrastando-o para o vagão mais longe da trans. Um rapaz passou por ela violentamente a ponto de sua bolsa cair do seu ombro. Ele não se desculpou e ainda a olhou “feio”. Ela recolheu sua bolsa e continuou a olhar pelo vidro da janela, calada, como se a atitude daquelas pessoas fosse normal e rotineira. Fiquei pensando o que todos que a encaravam ou afastaram-se acharam de casos como da Dandara ou do adolescente Itaberli assasinados por ignorância e preconceito. O que escondemos por trás de tanta violência direcionada a quem nada nos fez? Estamos esquecendo que antes de qualquer classificação, esses “objetos” donos do nosso ódio também são seres humanos. Eu “mereço” ser tratado diferente por que amo?!

         Cheguei ao meu destino e por lá fiquei até a hora do almoço. Com alguns colegas fui para um restaurante próximo. Escolhemos uma mesa e sentamos. Notei que uma das meninas do grupo olhava fixamente para o outro lado do restaurante, virei o pescoço por pura curiosidade. Ao lado, um casal de negros falava em outro idioma, que não consegui identificar, eles vestiam uma roupa que acredito fazer parte dos trajes habituais de sua cultura, a mulher usavava o cabelo volumoso envolvido por uma faixa vermelha. Quando virei novamente para nossa mesa, essa mesma garota esboçava um leve sorriso nos lábios. Perguntei para ela o motivo do riso, ela pega de surpresa disse que estava rindo de uma piada recebida antes num App qualquer, questionei se ela não queria compartilhar, disse não, pois tratava-se de algo pessoal. Pelo visto agora é uma posição pessoal.

         Voltando para casa, li algumas reportagens no celular e acabei vendo alguns comentários na página do site como “tem que morrer mesmo” ou “tem que matar tudo” ou ainda “esses manifestante são tudo vagabundo, só trava a cidade. Por que não vão embora?” Sentir meu pessimismo ganhando uma força incomum.

         Refleti durante um tempo, como podemos mudar alguma coisa ou buscar uma realidade diferente diante de uma cidade de homens e mulheres que se pintam de cinza e mostram-se dessa forma?! Então vi alguém ceder lugar no ônibus para uma grávida, e a mulher à minha frente pediu-me a bolsa para segurar, assim eu  ficaria mais confortável, uma vez que o transporte estava cheio. Naquele momento concluí que talvez ainda consigamos respeitar e dá valor ao outro. Na janela do ônibus vi meu reflexo com os lábios formarem um leve sorrisso seguido de um brilho nos olhos, assim trazendo de volta aquele cara que acredita ou precisa crer nisso.