O bom servidor, por Anderson Lucas
Não muito longe, existia uma fazenda cercada de lindas árvores floridas, outras carregadas de frutos, um sol brilhante de fazer os olhos cederem. Próximo a tudo isso corriam as águas tranquilas e claras de um rio.
Na fazenda alguns cavalos viviam presos em seus estábulos, uma boiada comia capim “livremente” cercada por uma cerca de arames. Galinhas ciscavam a terra em busca de alimento, embora a alguns metros delas uma plantação de milho balançasse ao ritmo do vento.
No centro disso tudo uma grande casa erguia-se imponente, rígida. Na porta de entrada da casa, um cachorro encontrava-se deitado de olhos abertos, no seu pescoço podia-se ver uma coleira de onde pendia um sino e um nome escrito: Encantado. Ao redor dele, outros cachorros dormiam, lambiam-se ou afugentavam as galinhas que se atreviam a tentar entrar na casa.
Em meio a essa dormência que existia na fazenda, no horizonte, diante dos olhos de Encantado, outro animal, que muito se aparentava a um cachorro, caminhava em direção ao quintal. Encantado antecipou-se! Correu em sua direção, alguns cachorros o seguiram.
O visitante percebendo que a matilha corria desordenadamente em sua direção parou e esperou a aproximação. Em poucos segundos os focinhos estavam frente a frente. Em meio aos rosnados do grupo, Encantado perguntou:
- Quem é você? Como se chama? O que faz aqui?
- Nome? Eu sou eu.... Preciso seguir em frente até alcançar o rio que corre atrás das árvores – respondeu o visitante que ao ameaçar dar um passo, foi bloqueado e não entendeu a resistência à frente.
Diante daquela reposta, Encantado não soube como reagir. A matilha o observava e esperava uma reação.
- Eu sei que você é você... Mas deve ter algum nome... Eu me chamo Encantado – Respondeu impaciente. Os outros cachorros concordaram a balançar o rabo.
- Desconheço o que você me apresenta. Mas não quero tomar seu tempo, apenas quero chegar ao rio, como já lhe disse.
- Como assim? Somos indignos de saber quem és?! – Falou Encantado sentindo-se ofendido com a resposta do outro.
- Não é meu objetivo ofendê-lo, deixe-me....
- Não! Por aqui você não passará! Essas terras têm donos! E eu na falta deles estou encarregado de defendê-la! – rosnava agressivamente e o sino balançava em seu pescoço.
O visitante não entendeu aquilo. E questionou:
- Dono? Defender do que?
- Sim! Tudo possui um dono. Não sabia? O meu dono é o Sr. dessas terras.
- Você tem um dono? Acho que não tenho um....
Encantado riu diante daquele argumento sem sentido. - Claro que sim! Todos temos um, ora! – Os outros cachorros o acompanharam nas risadas e emitiram latidos, se coçavam, pareciam hienas. O visitante assistiu a tudo aquilo atônito.
- Pois bem, meu caro “ninguém”, por aqui não passará! – reforçou Encantado.
- Mas por quê? O que lhe fiz para que me impeça a passagem?
- Ora! Não lhe conheço! Não confio em suas palavras! E diante disso, eu decido que não!
O visitante estava calmo, contemplou mais um pouco aqueles que lhe impediam a ida. Propôs:
- Bem... Já que não posso passar, por motivos de desconfiança, você poderia me acompanhar durante a passagem até o rio. Assim não ficarei sozinho a andar por “suas terras” e em seguida, após me refrescar, seguirei meu caminho.
- O quê? – Encantado ficou incrédulo diante daquela proposta. – Nunca! Não posso sair daqui. Fui ordenado a aqui ficar e jamais me ausentar. Essa a minha missão. Assim foi decidido....
- ..... pelo seu dono?!...
- Mais é claro. Jamais sairei sem que dele receba essa ordem.
- Onde ele está?
- Não sei. Não me cabe saber! Viajou... Não sei...
- Então em nome da liberdade dele, você encontra-se aprisionado?
- Não entendo o que insinua! Decido que se retire, para seu próprio bem. Intruso!
- Acalma-se. Não estou aqui para causar-lhe dano ou qualquer infortúnio. Apenas deixe-me passar e jamais voltará a me ver.
- Não! – Mostrou os dentes caninos ao visitante, enquanto babas brotaram de sua boca. Em coro, a matilha também reagiu enfurecida.
- Então façamos o seguinte. Por que não perguntamos aos seus bons amigos a melhor forma de resolver esse empecilho, uma vez que somos tantos aqui reunidos? Talvez encontremos uma solução mais...
- Que absurdo! – Encantado o interrompeu – Eles não decidem nada. Eu decido.
- Não podemos agredir a liberdade que cabe a eles...
- Mas a liberdade é dada a eles. Podem viver aqui, correr livremente, são alimentados todos os dias, têm segurança, abrigo, suas crias...! Nosso dono cuida de nós!
O visitante o interrompeu.
- Você está me dizendo que o que é de vocês por direito vital, é entregue como um prêmio dado por alguém?! Agora entendo sua gratidão.....– O visitante admirou-se – Não quero interferir em nada. Apenas me dê a liberdade de passar.
- Não entendeu ainda?! Já disse que não! Retire-se...
- Não posso, preciso alcançar as águas... Me lavar...
O visitante ameaçou passar. Foi impedido.
- Você não alcançará nada! Daqui não sairá mais!
Naquele momento, Encantado atirou-se ferozmente contra o visitante, a matilha em coro agressivo fez o mesmo. Uma briga começou.
Veloz, em direção à casa um carro aproximava-se. Parou. Uma porta metálica abriu-se rapidamente e saiu um senhor empunhando uma espingarda. Assistiu àquela luta com um leve sorriso no rosto.
Ao perceber que o visitante estava sem forças, embora ainda vivo, a matilha se afastou a latir. Alguns cachorros correram ao encontro do dono.
O senhor afagou Encantado e lhe disse:
- Muito bem garoto! Não o deixou comer minhas galinhas.
O dono retirou de uma bolsa de couro o que aparentava ser um pedaço de carne seca e jogou sobre a terra. Uma dúzia de cachorros partiu em disparada rumo ao “prêmio”. Brigaram. Agrediram-se. Emitiram latidos de fúrias um contra o outro, que acabaram por afugentar algumas galinhas assustadas que estavam próximas.
O visitante ainda encontrava-se imóvel no chão. O dono o pegou pelo pescoço e jogou seu corpo machucado na parte de trás da caminhonete.
A esposa do senhor, que até então estava dentro do automóvel aguardando o desenrolar da confusão canina, pulou para fora. E questionou o senhor:
- O que fará com o corpo?
Ele respondeu:
- Vou me livrar dele – Ligou a caminhonete e virou-se para a esposa - Escolha uma galinha gorda. Faça uma galinhada. Vamos comemorar. Prenda alguns cachorros no estábulo e outros no galinheiro. Os que sobrarem deixe aqui, na frente da casa. Podem ter outros selvagens rodando por ai.
A esposa, Encantado e a matilha, assistem a caminhonete sumindo ao longe a levar o visitante.
O visitante, machucado, mas ainda de olhos abertos assistiu aquele que o agrediu, não entendeu tanto deslumbre e encanto existente em seus olhos ao vê-lo se afastar.... Pois ele estava indo, ao contrário dos outros que se encontravam parados a abanar os rabos. Estáticos.